JEAN MESLIER – O padre ateu
Meslier foi um vigário de aldeia que viveu no norte
da França entre os anos de 1664 e 1729. Ele foi autor de uma obra contundente e
radical por meio da qual expressou toda a sua indignação contra a opressão e as
injustiças sociais cometidas contra os camponeses durante o reinado de Luís
XIV.
A solução por ele proposta para tais mazelas
encontramos no seu manuscrito intitulado Memória dos pensamentos e dos
sentimentos de Jean Meslier, concluído em 1720, e nas Cartas aos curas,
provavelmente redigidas na mesma época. E consiste no ideal de uma sociedade
fundamentada no ateísmo e na propriedade coletiva da terra.
Porém, para realizá-lo, Meslier preconiza, muito
antes dos jacobinos, dos anarquistas e dos bolcheviques, a união de todos os
explorados e oprimidos em torno do estrangulamento do último rei com as tripas
do último padre (MESLIER 3, I, p. 23).
“Meslier
nega categoricamente o dogma da criação do universo”
O fato de ser padre e paradoxalmente ateu e
comunista nos primeiros anos do século XVIII é uma situação, além de inusitada,
bastante significativa, sobretudo se analisarmos o pensamento de Meslier da
perspectiva da história da filosofia.
Quando contextualizamos historicamente o seu
posicionamento filosófico, político e ideológico, percebemos que Meslier foi,
com efeito, um pensador muito singular. Tal singularidade torna-se ainda mais
nítida quando comparamos a sua doutrina à dos expoentes do Iluminismo francês.
Do ponto de vista metafísico, Meslier nega
categoricamente o dogma da criação do universo (ibidem, II, p. 186 e 209), por
conseguinte, as idéias de divindade, transcendência e de providência ordenadora
da natureza (ibidem, II, p. 149).
Seu ateísmo, portanto, é inequívoco. Os deuses,
sem exceção, inclusive o deus judaico-cristão, são por ele definidos como
falsidades, como fábulas absurdas (ibidem II, p. 163). Os profetas e os santos
são julgados charlatães, e os milagres, por sua vez, aparecem como farsas, isto
é, como um produto da falta de escrúpulos dos que as sustentam combinada com a
ignorância e com medo dos humildes que a elas dão assentimento (ibidem, II, p.
343).
“Um século antes de
Nietzsche e algumas décadas antes do marquês de Sade”
Com a mesma veemência, Meslier argumenta a favor
do seu materialismo, que é radical. No seu entender, tudo o que existe é
material, ou seja, só há matéria no universo, apenas uma única substância na
natureza. E substância para ele é toda realidade corporal. A matéria é a
realidade, é o Ser propriamente dito. E como Ser, a matéria é a causa de si
mesma e de tudo o que é (ibidem, II, p. 237).
A idéia da existência de uma outra substância
além da matéria, uma substância imaterial e imortal, é refutada como
fantasiosa. Nesse sentido, Meslier opõe-se frontalmente a Descartes, o qual
concebe o homem como uma substância composta, mais precisamente como uma união
substancial constituída de matéria e espírito, extensão e pensamento (DESCARTES
2, p. 81). Vale dizer que o dualismo cartesiano era a corrente hegemônica no
cenário filosófico no qual se desenvolveram as reflexões de Meslier.
Além de ateu e materialista, Meslier também teceu
duras críticas à religião. E não apenas à religião cristã, mais especificamente
a católica, mas à religião em si mesma.
Um século antes de Nietzsche e algumas décadas
antes do surgimento estrondoso do marquês de Sade, esse padre provinciano
proferiu uma das maiores diatribes já proferidas contra o cristianismo, em
particular contra a figura de Jesus Cristo, que é definido por ele como louco,
fanático, ignorante e charlatão, como um indivíduo astuto que se aproveitou da
credulidade e do desespero de pessoas ignorantes para estabelecer o seu império
(ibidem, I, p. 100).
“Meslier era enfático em propor um comunismo utópico”
Do ponto de vista político e ideológico, a
posição de Meslier destoa significativamente da dos demais ilustrados. Ele
considerava a religião a princípio como um artifício humano; porém, como um
nefasto expediente dos espertalhões, aliás, como um eficiente instrumento de
dominação utilizado pelos reis, sacerdotes e demais parasitas para submeterem e
manipularem os povos imersos na miséria e debilitados pelo sofrimento (ibidem,
I, p. 45).
Meslier opunha-se não só ao absolutismo
monárquico, mas a qualquer outro tipo de monarquia, inclusive à monarquia
constitucional. Em contrapartida, defendia um governo conduzido pelos mais
esclarecidos e virtuosos, no fundo, um governo do baixo clero rural, classe à
qual pertencia, uma vez que esta sofria na pele as mesmas agruras que os
camponeses (MESLIER 4, p. 193).
Mais: Meslier refere-se com entusiasmo aos
tiranicidas (MESLIER 3, III, p. 132) e coloca-se radicalmente contra a
propriedade particular (ibidem, II, p. 74). O modelo de vida social que ele
tinha em vista eram as comunidades cristãs primitivas e as organizações de
certas ordens monásticas.
Meslier, na verdade, não dispunha propriamente de
um projeto político, porém, era enfático em propor um comunismo utópico, uma
ordem social baseada na fraternidade, na valorização do trabalho e na
exploração comum da terra (ibidem, II, p. 81).
“Meslier
manteve o seu ateísmo e o seu ideário libertário no mais absoluto sigilo”
A propósito, em várias passagens da sua obra, ele
conclama os povos oprimidos e explorados do mundo a se levantarem contra os
seus tiranos, bem ao modo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels
(ibidem, III, p. 147).
No entanto, a despeito da retórica inflamada e
das idéias revolucionárias dos seus sermões materialistas, o PADRE ATEU foi em
vida mais um revoltado, mais um indivíduo indignado com as injustiças sociais do
que efetivamente um homem de ação engajado na realização dos seus ideais.
Convém ressaltar que Meslier manteve o seu
ateísmo e o seu ideário libertário no mais absoluto sigilo durante toda a sua
existência, e que as suas convicções e os seus escritos apenas vieram à tona
postumamente, causando um retumbante escândalo.
Fonte: Livro Ateísmo e
comunismo: o lugar de Jean Meslier na filosofia política das Luzes. Autor:
Paulo Jonas de Lima Piva.
Paulo Jonas de Lima Piva é doutor em filosofia
pela USP, pós-doutorando em filosofia pela Universidade São Judas Tadeu
(USJT)/Fapesp, professor da USJT e autor de O ateu virtuoso: materialismo e
moral em Diderot.
Bibliografia:
1. DARNTON, R. Os best-sellers proibidos da
França pré-revolucionária. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
2. DESCARTES, R. Meditações. Trad. J. Guinsburg e
Bento Prado Jr. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. “Os Pensadores”).
3. MESLIER, J. Mémoire des pensées et des
sentiments de Jean Meslier. In:
Oeuvres complètes. Paris:
Anthropos, 1970 (Tome I); 1971 (Tome II); 1972 (Tome III).
4. Lettre aux cures. In: Oeuvres complètes. Tome III. Paris: Anthropos, 1972.
5.
RIHS, C. Les philosophes utopistes: le mythe de la cité communautaire em France au XVIII
siècle. Paris: Marcel Rivière, 1970.
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